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Do abandono aos títulos, uma história de superação no Uruguai

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Com muito trabalho, em sete anos, Juan Ferreira se tornou o principal time do Uruguai (Fotos: Acervo pessoal/Paola Galusso)

 

Por Sidrônio Henrique
27 de agosto de 2019

 

A 33ª edição do Campeonato Sul-Americano de Vôlei Feminino começa nesta quarta-feira (28), em Cajamarca, no Peru. O Brasil vai em busca do 21º título e é o favorito disparado – não perde essa competição desde 1993 e não tem cedido sets desde 1999. Potência mundial, com dois ouros olímpicos e várias outras conquistas, a seleção brasileira está num patamar muito superior aos adversários sul-americanos. E se alguns, como Argentina, Colômbia e Peru, vivem o semiprofissionalismo, nos demais países a realidade é amadora.

O Saque Viagem conta uma história de superação e amor ao voleibol. Um caso ocorrido no Uruguai, país com aproximadamente 3,5 milhões de habitantes, mas que poderia ter se passado em qualquer outra nação sul-americana, mesmo no Brasil, onde o investimento na modalidade ainda está restrito aos grandes centros e cidades próximas. Essa é a história de Juan Ferreira, ou JuanFe, um clube que estava abandonado, foi reerguido, virou campeão nacional e base da seleção feminina. Confira:

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As instalações, próximas ao aeroporto de Montevidéu, lembram um galpão. Não era mais do que isso no final de 2011. Ali funcionava somente uma lanchonete, nos fundos. Nessa época, oito jogadoras estavam sem clube e, embora tivessem propostas para integrar times da capital uruguaia, queriam ter seu próprio espaço e ajudar a difundir o voleibol.

 

As próprias jogadoras do JuanFe ajudaram a reformar o ginásio onde atuam

 

“A ideia nasceu quando procurávamos onde jogar. Meu pai, Miguel Galusso, treinador de vôlei, falava de JuanFe, que era o clube onde ele havia jogado e foi dirigente, que tinha tido uma boa equipe masculina nos anos 1990, mas que estava abandonado havia mais de 10 anos”, conta ao Saque Viagem Paola Galusso, ex-jogadora e ex-técnica da seleção uruguaia, que com 1,69m segue como levantadora do clube que ajudou a reerguer. Sua irmã Fabiana é líbero da equipe.

 

MÃO NA MASSA
Em 2012, renascia Juan Ferreira. “As instalações estavam realmente abandonadas. Aos poucos, fomos melhorando, nós mesmas fazendo tudo. Colocamos iluminação, pintamos as paredes, fizemos uma sala de ginástica com aparelhos de musculação doados, mas o grande salto foi quando compramos o piso emborrachado e paramos de jogar no cimento. Ainda falta renovar o teto. Com tantos anos de abandono, a falta de manutenção, surgiram muitas infiltrações, que nos impedem de treinar ou jogar quando chove”, menciona Paola, que se tornou presidente da agremiação. As instalações modestas são de 1941.

A levantadora, hoje aos 37 anos, conta que o estado do local era muito ruim para a prática do esporte. “A quadra era de cimento, já bem gasto. Nos primeiros treinos nos machucávamos muito, mas a motivação era tanta que nem nos importávamos”, relembra, rindo da situação.

 

 

ESCOLINHA
Além de surgir como mais um time de voleibol no Uruguai, o JuanFe passou a funcionar também como uma escolinha da modalidade para crianças. “Estamos localizados no bairro Carrasco Norte, numa região de Montevidéu onde os demais clubes são muito caros. O JuanFe passou a representar uma oportunidade para as crianças que não podiam ir a esses clubes e assim passaram a conhecer o vôlei.”

A exemplo de outras agremiações, lá também são mantidas categorias de base nos dois naipes. A equipe masculina, surgida pouco depois da feminina, ficou em terceiro lugar na última Livosur, a liga uruguaia.

 

A comunidade de Carrasco Norte passou a se envolver no projeto do JuanFe. Aqui comemoração do Dia da Criança, celebrado no segundo domingo de agosto no Uruguai

 

CONQUISTAS
Os títulos até que não demoraram muito. O primeiro veio em 2014, após perder três finais seguidas. O JuanFe já acumula em sete anos um total de 11 conquistas, entre torneios intermediários e a Livosur, inclusive na edição mais recente. Disputada principalmente nos fins de semana, a Livosur vai de março a novembro e conta com oito divisões. São 80 equipes em cada naipe. Na divisão principal feminina são oito. Além do JuanFe, os principais times femininos são Nautico, Banco República, Plaza Nova Helvecia e Carmelo Rowing. A maior parte dos clubes é da capital. “Há muita gente, mas falta apoio”, lamenta a levantadora e presidente do JuanFe.

Com tamanho domínio em pouco tempo, o clube tornou-se a base da seleção feminina. Para o Sul-Americano que está prestes a começar, sete foram convocadas, mas cinco pediram dispensa por questões pessoais ou por diferenças com a Federação Uruguaia de Voleibol (FUV). Ficaram a levantadora Candela Poncet e a ponteira Martina Amexeiras. As uruguaias estão na chave de Colômbia, Peru e Bolívia. Avançar às semifinais é um sonho remoto. O país tem seis medalhas na história da competição, duas pratas e quatro bronzes, porém a mais recente veio com o terceiro posto na edição do distante ano de 1973.

 

Em sete anos de projeto, JuanFe acumula 11 conquistas no voleibol uruguaio

 

FAMÍLIA E AMIGOS
Como ocorre em muitos países onde uma modalidade não é tão difundida, o voleibol no Uruguai é uma paixão que se divide com familiares e amigos. “Em algum momento, na seleção, havia quatro pares de irmãs: as Galusso, as Aguirre, as Jaime e as Cardozo”, recorda Paola. Ela tem sempre por perto a central Florencia Aguirre, 1,93m, principal nome desse esporte no Uruguai. As duas amigas tocam o clube. Florencia é vice-presidente.

É possível que você já tenha lido ou escutado esse nome antes. É que Florencia já jogou na Europa, inclusive na liga italiana. Foi titular do Casalmaggiore na temporada 2013/2014, quando a equipe terminou em sexto lugar. Habilidosa, se destacou tanto no ataque quanto no bloqueio.

 

Florencia e Paola jogaram juntas na seleção uruguaia, seguem no JuanFe e dividem a administração do clube

 

CONCILIANDO TRABALHO E VÔLEI
Quem fala mais sobre Florencia é o técnico da seleção feminina do Brasil, o tricampeão olímpico José Roberto Guimarães. “Sempre tínhamos olhos para ela, uma jogadora diferenciada, bastante alta. Ela poderia muito bem ter jogado nos times brasileiros, ter vindo para a Superliga, mas acabou indo para a Itália. É uma central muito interessante”, afirma o treinador ao site.

A meio de rede nos disse que teve proposta para renovar com o Casalmaggiore, mas tinha o sonho de concluir a faculdade de Arquitetura. “Tinha disputado duas temporadas seguidas na Europa (a anterior na liga francesa), recebi proposta para renovar na Itália, mas precisava terminar meu curso e começar outra carreira”, explica a atleta de 30 anos. Atualmente, ela concilia o trabalho de arquiteta com o voleibol. Eventualmente joga no exterior, mas em ligas mais curtas e em países próximos, como Argentina e Peru. No início deste ano, abriu uma exceção e atuou por três meses numa equipe de Israel, disputando o campeonato local e uma copa europeia.

Se você falar de vôlei com algum uruguaio que siga a modalidade, possivelmente o nome de Florencia Aguirre será citado. Ao voltar da Europa, além de mergulhar nos estudos, ela encontrou tempo para o JuanFe.

 

Florencia fez sucesso no Casalmaggiore. Só não permaneceu na equipe italiana porque queria se formar em Arquitetura (Foto: Lega Pallavolo Femminile)

 

ESPORTE MENOR
A necessidade de se pensar noutra atividade além do vôlei é óbvia. Apenas o futebol é profissional entre os esportes no Uruguai. Paola Galusso tem trabalhado na área comercial de diferentes multinacionais. Viver do voleibol não é possível, mesmo entre aqueles que são dos maiores clubes.

“O jogador uruguaio de vôlei, como todo atleta de qualquer modalidade que seja considerada menor em nosso país, não tem apoio. Falta gestão, planejamento, organização e, claro, dinheiro”, enumera Paola. “Aqui pagamos para jogar e, se você está na seleção, às vezes tem que cobrir seus gastos, como passagem, hospedagem, comida. Fiquei 10 anos na seleção e, para viajar, tinha que pedir uma licença não remunerada, ou seja, viajava para representar o país e ficava sem receber uma parte do salário. Aí você vê a falta de uma política voltada para o esporte”, completa.

O futebol é a paixão nacional. O valente Uruguai já conquistou duas Copas do Mundo, uma delas sobre o Brasil, em pleno Maracanã, em 1950. Também tem dois títulos olímpicos e 15 da Copa América (o maior vencedor do torneio). Bem distante, como segundo esporte, vem o basquete, que já deu ao país duas medalhas de bronze olímpicas, também nos anos 1950. Depois aparecem modalidades como automobilismo, rúgbi e futsal. O voleibol desperta pouco interesse.

 

Vôlei é caso de família no Uruguai. Aqui dois pares de irmãs: Florencia Aguirre, Fabiana Galusso, Victoria Aguirre e Paola Galusso

 

SACRIFÍCIO
“Seja jogando pela seleção ou nos clubes, ninguém recebe nada no Uruguai. Isso envolve muito esforço e sacrifício, pois todos são profissionais em outras atividades ou estudam. Aqui consideram o vôlei um esporte menor e, por ser coletivo, torna-se ainda mais difícil ter apoio para viajar e competir, fazer amistosos, dar aos atletas e treinadores as condições necessárias para levar adiante um processo realmente sério de desenvolvimento”, pondera Florencia Aguirre, que segue acompanhando os grandes torneios internacionais sempre que pode. Referência entre os admiradores uruguaios do vôlei, ela não apontou nenhum ídolo quando perguntada.

Sem suporte, sobram o esforço das atletas e a paixão pelo esporte. “Quando nos dão um pouco mais de condições, mostramos nosso potencial. No Sul-Americano de 2009, por exemplo, terminamos em quinto lugar, mas ganhamos da Venezuela por 3 a 2, que era a mesma equipe que havia competido nos Jogos Olímpicos de Pequim, no ano anterior”, cita Paola Galusso.

Apesar das dificuldades, a levantadora, que disse ter se espelhado em Fernanda Venturini e Fofão, afirma que ver o JuanFe funcionando é um sonho realizado. “Agora quero que o vôlei cresça em nosso país”, ambiciona.

 

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