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Isabel do vôlei: 60 anos de inquietude e liderança

Isabel fez história no voleibol brasileiro (Fotos: Reprodução / Internet / Acervo Pessoal / FIVB)

 

Por Sidrônio Henrique
2 de agosto de 2020

 

Ginásio do Ibirapuera lotado, 20 mil pessoas empurrando a seleção brasileira feminina de vôlei contra as japonesas, em São Paulo, naquela noite do final de agosto de 1982, pelo Mundialito, torneio amistoso preparatório para o Campeonato Mundial. Irritados com a iminente vitória nipônica, o público vaiava as asiáticas e atirava objetos na quadra. Com apenas 22 anos, a ponteira Isabel Salgado foi até a mesa dos apontadores, pegou o microfone e avisou: “se não pararem com isso, não vai mais ter jogo”. Silêncio geral. A partida continuou, o Brasil perdeu, mas os torcedores se comportaram até o final.

A carioca Maria Isabel Barroso Salgado aprendeu desde cedo a se opor contra o que considerava errado, injusto, acintoso. “Eu vinha de uma família onde as mulheres tinham voz. Meu pai tinha enorme respeito pela minha mãe. Lá em casa, nunca precisávamos falar alto para sermos ouvidas, a argumentação sempre foi o norte.” Neste 2 de agosto de 2020, a ex-atacante, peça-chave na popularização do voleibol no Brasil no início dos anos 1980, completa 60 anos.


PIONEIRA
Mãe de cinco (jogou grávida de três deles), avó de outros cinco, Isabel do vôlei, como o torcedor se acostumou a chamá-la, fez história: foi a primeira atleta brasileira do vôlei a atuar numa liga estrangeira (na Itália), a pioneira no mundo no ataque do fundo de quadra, a maior pontuadora dos Jogos Olímpicos de Los Angeles-1984, capa da revista de maior circulação nacional – um feito único no voleibol e raro até entre futebolistas. Com seu 1,80m, tinha um alcance de 3,10m, tendo amadurecido numa época amadora, em que a preparação física engatinhava. Jogou na quadra, na praia. Parou aos 38 anos, passou a ser treinadora. Três dos seus filhos – Maria Clara, Pedro e Carol – são atletas profissionais de vôlei de praia.

Isabel deixou a modalidade, mas segue na ribalta. Recentemente, encabeçou o movimento “Esporte pela Democracia”, com o propósito de lutar por uma sociedade mais justa. “Tem muita gente pedindo socorro, a desigualdade só se aprofunda, isso é muito triste”, disse em entrevista ao Saque Viagem.

Em um bate-papo de três horas, Isabel conversou conosco sobre carreira, família, cidadania, entre outros temas. Confira os principais momentos:

 

Isabel #7 durante a adolescência no Flamengo

 

Saque Viagem – Isabel, você começou a jogar na escola e, de lá, foi para o clube?
Isabel – Eu comecei no colégio (Notre Dame) e logo em seguida fui para o Flamengo. O técnico na escola era o Ênio (Figueiredo, técnico da seleção brasileira de 1978 a 1984, falecido em 2014), que em seguida estava montando uma equipe mirim no Flamengo, aí ele me chamou pro clube e eu adorei a ideia. Tinha 12 anos quando comecei na escola e 13 quando fui pro Flamengo.

Saque Viagem – Quem foram seus ídolos no esporte?
Isabel – A primeira pessoa que vi jogar e me impressionou foi do basquete, a Norminha, da seleção brasileira. Eu era muito menina… Eu lembro de estar em casa vendo e achar aquilo o maior barato. Outro que eu adorava era o Carioquinha, também do basquete. Eu achava tão bacana a plástica do esporte. Eu me lembro da Copa do Mundo de futebol de 1970, eu tinha 10 anos… Meu pai a mil vendo pela televisão e a gente se sentava pra assistir. Mas eu era muito ignorante em relação ao esporte, não havia formação sobre isso dentro de casa. Não conhecia ninguém do vôlei, até porque não era mostrado.

Saque Viagem – Quando foi que você percebeu que tinha um relacionamento muito sério com o voleibol?
Isabel – Eu percebi desde cedo. Eu não venho de uma família de esportistas. Meu pai gostava muito de esporte, mas não havia uma atmosfera dentro de casa. Minha escola era só de mulheres, eu estudava num colégio de freiras. Com 13 anos, quando eu chego no Flamengo, aquela maneira de falar, de se comportar… Para mim, aquilo representava liberdade, uma grande descoberta. E a minha mãe, nisso ela foi muito legal, o meu pai idem, eles nunca ficaram me patrulhando para fazer ou ser alguma coisa diante das expectativas deles. O ensino era importante, eu tinha que estudar, mas tinha liberdade para treinar e me dedicar ao que eu gostava.

 

Foto de família nos anos 1960: com a mãe, Marília, o pai, Antonio, e as irmãs no Rio de Janeiro

 

Saque Viagem – Você veio de uma família de tradição intelectual. Sua avó materna, Antonieta, escrevia poesias, crônicas e artigos, além de ser ligada ao teatro, enquanto seu avô materno, Geraldo, era escritor. Houve alguma resistência por você ter optado pelo esporte?
Isabel – Não, não houve. A minha mãe, por exemplo, não entendia de esporte. Então quando ela ia me ver jogar, fazia comentários sobre a plasticidade, nunca era o resultado. Se eu perdia um jogo, ela dizia “mas foi lindo, foi divino”. Isso era curioso, divertido. Minha avó foi uma pessoa muito importante na minha vida, ela gostava muito de mim. Era a pessoa que me contava histórias, que me falava do mundo, que me abriu a cabeça, me apresentou várias coisas. Minha mãe também. Música, cinema… Eu ia muito ao cinema com a minha avó quando eu era pequena. Depois, com o vôlei, começou a ficar mais difícil. Mas à noite a gente se encontrava em casa e sempre conversava até tarde, mesmo eu tendo que acordar cedo e estudar. Tive o privilégio de ter pessoas muito bacanas do meu lado.

Saque Viagem – Qual foi o papel do Ênio Figueiredo na sua formação de atleta?
Isabel – Eu adorava o Ênio. Ele era o meu técnico, acreditou em mim, me incentivou muito. Cuidou de mim, me dava bronca. Quando eu viajava, minha mãe fazia mil recomendações e o Ênio tinha cuidado comigo, com as atletas. E via meu potencial. Quando eu comecei era um desastre, não jogava nada, era muito desengonçada, muito alta pra minha idade, magrinha. Aquela história da menina que cresceu muito, então você fica meio perdida. E ali a minha altura servia pra alguma coisa, as pessoas achavam que aquilo era bom. Estar naquele mundo me fez valorizar o fato de ser alta. O Ênio me treinava bastante e eu era muito dedicada. Adorava treinar. Mesmo morando no Rio de Janeiro, sabe como é, verão, todo mundo na praia, mas eu estava feliz por estar na quadra.

 

Ênio Figueiredo em imagem dos anos 1990. Além de treinar a seleção feminina do Brasil, de 1978 a 1984, foi treinador do Peru nos anos de 2007 e 2008.

 

Saque Viagem – Bom, você achou seu lugar no vôlei.
Isabel – Mais tarde, no final da adolescência, eu senti um pouco. Meus amigos começavam a viajar nas férias, iam a Trancoso, Arraial d’Ajuda… Na época, a onda era essa. E eu não podia fazer essas viagens porque tinha treino. Mas eu gostava de treinar, não gostava do mundo do vôlei.

Saque Viagem – Por quê?
Isabel – Os meus amigos eram de outros lugares. Na praia, era outra turma. Eu passava muito tempo dentro da quadra. Chega uma idade em que você tem seus interesses, o que te mobiliza, o que te toca. Então a música que eu curtia nem sempre o pessoal da quadra gostava. O teatro que eu queria ver, os filmes… Eu ficava muito feliz de estar na quadra, de ter aquelas parceiras, mas eu gostava também do meu mundo fora da quadra, com outra galera, outra história. Isso não quer dizer que eu não encontrei ao longo do tempo várias pessoas do vôlei com quem eu troquei figurinha, tive afinidades, olhares, críticas. O que me mobilizava para estar ali era o meu amor pelo esporte. Eu achava legal dividir a quadra com alguém. Partilhar sentimentos tão fortes, como a dor de uma derrota, a alegria de uma vitória, de virar um jogo. A onda de você estar na quadra e nada mais é importante, só aquele momento, somente aquilo.

Saque Viagem – Você tinha dificuldade na recepção. Como lidava com essa deficiência?
Isabel – Quando comecei a jogar, adorava atacar. Se me mandassem atacar três horas, ficaria atacando três horas numa boa. Se fosse pra passar ou defender, eu já não era muito interessada. Isso foi uma falha na minha formação. Com o passar do tempo, o esporte foi mudando, claro. Hoje em dia é muito mais trabalho, dedicação. Faltou, da minha parte, esse empenho. Alguns técnicos também deveriam ter me incentivado a fazer isso. Quando fui técnica, insistia muito com algumas jogadoras para que desenvolvessem mais outras habilidades.

 

Isabel e Jacqueline durante os Jogos Pan-Americanos de 1983, em Caracas, na Venezuela

 

Saque Viagem – No segundo livro da Jacqueline Silva (“Jackie do Brasil”), sua amiga e ex-colega nas quadras, ela conta que várias vezes, ainda nas categorias de base, vocês eram cortadas por indisciplina, por contestar certas coisas, depois retornavam. Era uma época em que, por causa da ditadura, havia uma presença muito forte dos militares no esporte amador, havia um clima repressivo. Ela dizia que vocês não faziam nada demais, mas que eram punidas. Faltava tato aos dirigentes e à comissão técnica?
Isabel – Faltava bom senso em algumas situações da parte de quem estava gerenciando, pois quando você fala de jovens o bom senso tem que vir de quem lidera. Tudo depende da ótica, do teu olhar. A gente nunca fez nada demais, nada de tão grave, impactante. Eram bobagens de meninas, coisas tão normais, tão razoáveis. Mas foi enriquecedor ter vivido tudo aquilo, contestado. Isso te ajuda a olhar para o mundo de maneira diferente, não aceitar absurdos, não aceitar quando te propõem coisas que não fazem sentido. Você tem que ter ética, estar em paz com sua consciência. Agora, olhando pra trás, eu admito que contestava bastante e isso incomoda (risos).

Saque Viagem – Dá um exemplo.
Isabel – Os horários para as mulheres sempre foram muito mais restritos do que os dos homens. A liberdade para ter folga era bem diferente entre mulheres e homens. O resto você conclui, partindo desse princípio. Claro que ninguém queria extrapolar, sair na véspera de um jogo, nada disso, seria bobagem.

Saque Viagem – Com 20 anos recém-completados você foi jogar na Itália, já era mãe. Você foi a primeira brasileira a jogar vôlei profissionalmente no exterior. Como foi essa experiência?
Isabel – Eu engravidei cedo, em 1978, aí me casei com poucos meses de gravidez. Nos separamos um ano depois, ele era muito jovem também. Logo depois da Olimpíada de Moscou, em 1980, eu fui direto pra Modena, na Itália. A minha mãe queria que eu deixasse a Pilar (filha mais velha) com ela porque achava que eu era muito nova e ela não poderia ir comigo. Essa hipótese pra mim não existia e eu fui com a Pilar pra Itália. Foi muito legal, foi ótimo pra mim, morar sozinha com um bebê, eu era responsável por tudo. Eu cheguei na Itália, saí do aeroporto e fui direto pra quadra, pra jogar, o campeonato já estava rolando. Levei a Pilar. Nós tomamos um banho. Eu preparei uma mamadeira e a minha filha ficou no colo da mulher do técnico. Eu virei pra ela e falei: “agora eu vou jogar”. Quando olhava pra ela, a Pilar estava batendo palmas. No meio do jogo, ela estava dormindo. A Pilar e eu fazíamos tudo juntas em Modena, íamos pra cima e pra baixo de bicicleta.
Eu fui a primeira brasileira a jogar vôlei no exterior, ninguém tinha saído ainda. Tudo era novidade. Eu lembro quando o técnico me deixou em casa depois do primeiro jogo, a gente havia vencido. Ele falou: “amanhã eu passo aqui pra te pegar, pra gente treinar”. E eu: “mas como é que eu vou acordar?”. E ele mencionou o despertador. Eu nunca havia colocado um despertador pra me acordar. Sempre tinha vivido numa casa cheia de gente, na seleção sempre tinha uma colega pra chamar. Eram sempre ambientes com muita gente. De repente, eu estava por minha conta. Foi muito bom. Eu adoro a Itália, voltei outras vezes, para outras temporadas.

 

Isabel com Pilar, Maria Clara e Pedro

 

Saque Viagem – Como é que os italianos te descobriram? Você não havia participado do Mundial 1978 porque estava grávida, ainda não tinha disputado nenhuma competição global com a seleção quando foi chamada pelo Modena e ao ir para Moscou-1980 já havia recebido o convite.
Isabel – Foi o Bernard (Rajzman, integrante da Geração de Prata e primeiro brasileiro no Hall da Fama), ele era muito conhecido no meio do vôlei, já jogava na Itália, justamente em Modena. O pessoal do time feminino pediu pra ele indicar alguém e ele falou comigo, me procurou. Eu não era amiga do Bernard, de ter convivência, mas ele foi muito legal comigo, fez essa ponte e os italianos me receberam muito bem. Bernard foi muito camarada, me protegeu muito na Itália naquela temporada que eu fiquei lá, pois ele estava ali há mais tempo. Apesar de eu receber um salário, o vôlei feminino na Itália ainda não tinha a estrutura que o masculino tinha. Então eu estava na frente delas, era bola pra mim o tempo todo. E eu adorava jogar. Quando eu desci do avião e me perguntaram, “você topa jogar agora?”, eu disse “topo, só preciso tomar um banho e aí consigo jogar”.

Saque Viagem – Foi também a primeira vez que você ganhou dinheiro jogando vôlei? Como você se sentia?
Isabel – Foi a primeira vez que recebi dinheiro, tudo me parecia fantástico. Como é que eu estava ganhando pra fazer o que eu adorava? Olha a cabeça do atleta amador, que vinha de outra realidade. Eu achava aquela situação na Itália engraçadíssima, maravilhosa, eu ganhava pra me divertir. Depois eu entendi, mas na época era muito nova e o vôlei no Brasil não dava retorno financeiro. Eu dizia para as minhas irmãs, “por favor, estudem muito porque nunca vou ganhar dinheiro e vocês vão ter que me sustentar.” Eu, com meus 14 anos, chegava do treino ou de um jogo, e elas estavam estudando (Isabel é a terceira das quatro filhas do casal Marília e Antonio). Minha mãe me ensinava as tarefas e eu dormia, aí ela dizia “acorda”.

Saque Viagem – Você chegou a entrar na universidade. O que você estudava?
Isabel – Eu fui pra universidade, entrei no curso de História, mas só fiquei um período. Não consegui estudar. Tinha clube, seleção, viagens, minha filha… Se eu continuasse, não ia me aprofundar.

 

Isabel em imagem do início dos anos 1980

 

Saque Viagem – Sua primeira grande competição com a seleção foi a Olimpíada de Moscou, em 1980. O Brasil, que não havia se classificado, só participou por causa do boicote liderado pelos Estados Unidos. A seleção brasileira era um time amador, que chegou ali por acaso. Vocês tinham a dimensão do que representava estar numa Olimpíada?
Isabel – Algumas jogadoras tinham essa noção porque vinham de um ambiente familiar ligado ao esporte. Por exemplo, a Vera Mossa, que vinha de uma família assim, entendia bem o que era uma Olimpíada. Eu não, até porque a visibilidade de qualquer coisa na imprensa era menor, não havia internet, redes sociais. Eu sabia que era uma grande festa e que a gente estava entrando sem ter um convite bacana, aquele convidado que vai chegando e pensando “vamos ver se a nossa roupa está adequada”. Ao mesmo tempo, éramos muito bem tratadas na vila olímpica, éramos alegres, felizes por estar ali. Mas o nosso amadorismo era excessivo, na maneira da gente lidar com tudo. Estar ali foi importante pra acender uma chama, pra gente saber que era preciso chegar na Olimpíada seguinte de outra maneira.

Saque Viagem – No Campeonato Sul-Americano 1981, em Santo André (SP), você e a Jacqueline foram cortadas durante o torneio, a dois dias da partida final, contra o Peru. O que aconteceu?
Isabel – Na época eu fiquei muito triste, muito chateada. Mas naquele momento eu não tinha como agir de outra forma, era até uma questão ideológica. Muitas vezes você perde aqui, mas ganha mais adiante e a vida se encarrega de te mostrar que você estava no caminho certo.
Meses antes, numa seleção juvenil, embora eu já jogasse no adulto, fui cortada por ter chegado atrasada no primeiro treino. Aquele seria meu último Sul-Americano na categoria juvenil. Como já jogava também na seleção principal, você presume que eu tinha bola pra estar ali numa boa. Na manhã da apresentação, acordei tarde. O técnico, o Ênio, tinha me emprestado o carro pra eu não chegar atrasada no treino, que era na Avenida Brasil, no Cefan (Centro de Educação Física Almirante Adalberto Nunes, da Marinha), longe da minha casa. Saí desesperada. Só de lembrar, começo a suar. Peguei o caminho errado porque não circulava por ali… Tentei dar uma ré… Eu dirigia muito mal. De repente aparece um guarda, começa a apitar. Mas ele acabou me ajudando a dar essa ré.
Quando finalmente cheguei ao treino, fui cortada, não teve papo. Achei aquilo muito injusto porque eu era uma atleta muito dedicada e no primeiro treino não me deixaram nem me explicar… Isso traduz também aquela época. Entrei no quarto e comentei com a Jacqueline, que falou: “nossa, mas que absurdo, isso não é justo”. E aí a Jackie pediu dispensa. Foi tentar argumentar com a comissão técnica e com o supervisor, e um deles disse a ela: “não gostou, pede dispensa”. Ela pediu. Daqui a pouco a Jackie entra no quarto e fala: “tenho que arrumar minhas coisas também”. Ficamos muito chateadas.
No episódio do Sul-Americano adulto, de 1981, a Jackie teve um problema. Estava rolando uma história de ser titular, não ser titular… Tinha uma sacanagem rolando, um certo boicote com a gente, especialmente com a Jacqueline. Até que uma hora o Ênio chamou nós duas e disse: “olha, ou vocês vão pro banco e ficam quietas ou então vão embora”. Olhamos uma pra cara da outra e dissemos: “então vamos embora”. A questão ali não era só ser reserva ou titular, estava rolando um clima tenso. Falo isso, mas adoro o Ênio. Ele me cortou mais de uma vez, mas isso passa. Porém, na época, fiquei realmente muito chateada. As meninas ganharam do Peru lindamente, num ginásio que era um alçapão, foi incrível. Imagina ver aquilo pela televisão, depois de ter treinado meses. Mas tudo bem, hoje olho pra trás e isso é apenas uma história.

 

Isabel ao lado de Sócrates, William Carvalho e Hortência, em foto da revista Placar

 

Saque Viagem – No ano seguinte houve o “boom” do vôlei, que começou com o Mundialito* feminino, em São Paulo. Como foi a reação das atletas, virando notícia nacional, num esporte que antes tinha um público restrito?
Isabel – Nós não tínhamos um público grande. Nosso público eram pais, amigos… Jogar num ginásio muito grande era sempre chato porque nunca tinha gente o bastante pra um local enorme. Quando a gente soube que o Mundialito ia ser disputado no Ibirapuera, a gente ficou “ah, que pena, vai ser aquela coisa vazia, horrorosa”. Lembro que quando a gente entrou pela primeira vez no vestiário, havia aquelas luzes de camarim, aí começamos a brincar, como se fossemos grandes estrelas. Na época o (locutor) Luciano do Valle estava na TV Record e havia comprado os direitos de transmissão do torneio. A cada jogo o público ia aumentando. O Brasil havia perdido a Copa do Mundo de futebol e não foi bem no Mundial masculino de basquete.
Nós não éramos nada, ninguém falava de vôlei, ninguém comentava. Ganhamos um jogo, depois outro, o público foi crescendo. Eu lembro de uma virada contra a Coreia do Sul, que logo depois a torcida invadiu a quadra. A gente não estava acostumada com aquilo. Quando as pessoas correram pra abraçar a gente, eu abraçava. Queria agradecer, as pessoas vieram e acreditavam na gente. De repente, a multidão passou a me sufocar. Nenhuma de nós sabia lidar com aquilo. Do dia pra noite, passaram a pedir opinião sobre tudo: “Isabel, o que você acha de babado na roupa? O que você acha sobre sei-lá-o-quê?”. Eu achava aquilo tudo muito estranho, engraçado até. Mas foi muito bom para o vôlei, que cresceu em popularidade, o público passou a ter um outro olhar pra modalidade. O masculino veio logo em seguida e foi o máximo. As pessoas precisavam ver o Brasil ganhar.

 

 

Saque Viagem – Como foi o episódio da partida contra o Japão no Mundialito, quando você exigiu que a torcida parasse de atirar objetos na quadra?
Isabel – A torcida atirava coisas, até uns saquinhos com água, e o jogo era interrompido. Eu pedi pra pararem de fazer aquilo porque não era um comportamento correto. Até hoje, não consigo entender, por exemplo, por que quando uma torcida tem um comportamento racista todos os atletas não deixam o campo ou a quadra. Não compreendo como não fazem nada quando um companheiro ou adversário é ofendido de uma forma tão baixa, tão horrorosa.

Saque Viagem – Houve outro momento, naquela época, em que você se revoltou ao ver uma atleta ser esmurrada pelo técnico, durante uma excursão da seleção brasileira pela Ásia. Como foi?
Isabel – Nós tínhamos uma série de amistosos da seleção brasileira numa excursão pelo Japão, contra clubes. Num desses jogos, o técnico do time japonês se aborreceu com a capitã dele, cerrou o punho e deu três socos nela. No primeiro soco, eu olhei estarrecida. No segundo, já me preparei pra correr. Quando ele deu o terceiro, eu senti o Ênio e o assistente me segurando, enquanto eu berrava com o técnico japonês, que sabia falar espanhol. Eu gritava: “você é louco”. Foi uma confusão. Mais tarde, houve um evento com essa equipe japonesa e lá estava a jogadora deles, com o olho direito machucado, servindo todo mundo. Depois, no banheiro, eu consegui me comunicar com ela, dizer que aquilo era um absurdo, que o cara era um maluco, mas ela só ria, com uma atitude submissa. O técnico acabou levando uma advertência severa e isso, na hierarquia deles, era algo fora da curva, pois ninguém era repreendido por fazer algo contra uma atleta. Anos depois eu joguei na liga japonesa, conheço bem a dinâmica deles. Adoro o Japão, mas odeio essas coisas.

 

A “cortadora” Isabel na capa de Veja, em setembro de 1982: momento histórico para o vôlei no país

 

Saque Viagem – Você foi capa da Veja logo depois do Mundialito, em 1982. Te deram o título de “musa do vôlei”, você estampava a capa da revista de maior circulação nacional. O que aquele momento representou e como você lidava com o rótulo de musa?
Isabel – Achava esse rótulo de musa um troço brega, meio cafona. Mas, de qualquer forma, é melhor ter um rótulo que te enaltece, que te bota pra cima do que alguém te dizendo que você é indisciplinada, que você é isso, é aquilo. Eu tive tantos rótulos, mas nunca embarquei neles, pois o cara que hoje me chama de musa amanhã me chama de indisciplinada ou de outra coisa. Quando a Veja me procurou pra fazer essa reportagem eu era tão desligada… As fotos de capa estavam marcadas num dia em que eu estava de folga, aí eu pensava, “poxa, vou ter que fazer foto logo no dia de descansar, quero ir à praia”. Não lembro quem chegou pra mim e falou: “você tem que fazer, vai ser muito legal pra sua carreira, a Veja nunca deu esse espaço pra uma mulher no esporte”. Eu fiz e foi ótimo, pois logo em seguida aconteceram várias coisas bacanas profissionalmente, que acredito que tenham ocorrido muito em função disso. Mas eu era realmente muito desligada. Eu poderia receber um telegrama do presidente da República, mas não registrava aquilo como a maioria das pessoas faria. Eu era muito nova.

Saque Viagem – O fato de te chamarem de “Isabel do vôlei” já era divertido desde o início, te incomodava, era algo indiferente?
Isabel – Nunca me incomodou, eu achava engraçado. Às vezes me surpreendo por estar fazendo 60 anos e encontrar alguém na rua que me reconhece, acho um barato quando apontam “essa é a Isabel do vôlei”. Eu ouço aquilo e penso “até hoje sou a Isabel do vôlei”. Fico feliz que as pessoas tenham um registro simpático em relação a mim.

Saque Viagem – Como foram aqueles anos em que vocês passavam do amadorismo para os primeiros passos da profissionalização do vôlei?
Isabel – Foi tudo obviamente um processo e havia as raposas no meio do caminho. A gente foi aprendendo, sabendo lidar enquanto o processo avançava. Teve gente que deu uma surtada, começou a achar que rolava alguma coisa a mais do que na realidade estava, teve gente que perdeu o bonde, cada um foi aprendendo do seu jeito. Como tínhamos vindo do amadorismo, eu dei muita sorte. Encontrei pessoas que me ajudaram, que foram legais comigo. Já ouvi inúmeras histórias de atletas que levaram calote. Isso nunca aconteceu comigo quando era jogadora, sempre recebi. Isso só foi acontecer mais tarde, como técnica, no Vasco, com atraso de salário.

 

A peruana Cecilia Tait, que mais tarde jogaria no Brasil, pela Sadia, aqui atacando contra a China, na final do Mundial 1982, quando o Peru ficou com a prata

 

Saque Viagem – Como era a rivalidade com as peruanas? E o que você achava daquela seleção que dominava o cenário sul-americano e se destacava no mundo?
Isabel – Algumas delas eram mais marrentas, mas eu não entrava nessa. Agora, o vôlei do Peru era sensacional, incrível. Havia um trabalho muito bem feito, inclusive com algumas jogadoras que não tinham biotipo para o vôlei. Foi impressionante o que o técnico (Man Bok Park) conseguiu. E o vôlei tinha uma popularidade imensa por lá… Joguei em Lima uma vez (no Mundial 1982) e foi uma das maiores torcidas que já vi. A rivalidade é legal porque alimenta o esporte. A Cecília Tait era uma estrela, grande jogadora, bonita, charmosíssima. Depois surgiu a Gabriela Perez, outra atleta incrível. Veja a Aurora Heredia (jogou com Isabel na Supergasbrás), ela não tinha o biotipo de jogadora de vôlei e era craque. Isso demonstra que o esporte traz resultados quando você investe, quando você se dedica. Imagine em quantas modalidades poderíamos estar arrebentando aqui no Brasil. E esporte tem outra função, que vai além do alto rendimento e é mais importante do que qualquer medalha, que é ser instrumento da educação, ajudando crianças e jovens a se desenvolverem física e emocionalmente. O esporte te ensina a lidar com diferenças. No meu caso, que era uma menina muito agitada, o esporte foi fundamental.

Saque Viagem – Você jogando durante a gravidez nos anos 1980 representou um momento marcante do esporte brasileiro naquela década. Por que decidiu jogar grávida?
Isabel – Na minha primeira gravidez, da Pilar, em 1978, eu não tinha a menor vontade de jogar vôlei – eu andava na praia, corria, jogava frescobol. Toda vez que fiquei grávida, eu sempre tinha o acompanhamento de um bom médico e eu sempre fazia o que eu sentia que dava. Eu me sentia bem em quadra quando joguei grávida, me sentia muito segura, meu físico era muito bem preparado. Todos os meus partos foram normais. Durante a gravidez da Maria Clara, que nasceu em 1983, eu joguei por bastante tempo. Em seguida veio o Pedro, nascido em 1986, e eu joguei um pouco menos, mas treinei mais. E na gravidez da Carol, nascida em 1987, eu treinei muito, até o finalzinho. Uma mulher grande, com um barrigão e uma bola do lado era algo fora do comum. Hoje em dia a gente vê muitas mulheres grávidas fazendo exercício.

 

Isabel jogando grávida de Maria Clara

 

Saque Viagem – Em 1983, você foi a primeira mulher a atacar do fundo de quadra. No ano seguinte, na Olimpíada de Los Angeles, era a única na competição a fazer aquilo. Lembra como começou?
Isabel – Eu nem sabia disso (risos). Como já disse, era desligada. Olha, me divertia muito jogando e isso foi o mais difícil na hora de parar. No esporte, você lida com emoções muito fortes: medo, prazer, alegria. Era como se eu estivesse num grande recreio da vida, quando tudo o que interessava era botar a bola no chão.

Saque Viagem – A seleção brasileira ficou concentrada por cinco meses no Centro Técnico Aeroespacial (CTA), em São José dos Campos (SP), se preparando para Los Angeles-1984. O principal objetivo era vencer os Estados Unidos e assim ter a chance de uma inédita semifinal. O jogo acabou sendo dramático e o Brasil perdeu de virada, por 3 a 2, na derrota que você já chamou de a mais dolorosa da sua carreira. Faltou preparo psicológico?
Isabel – A gente estudou muito aquele time, se preparou demais pra jogar contra elas. Nosso retrospecto contra os EUA era só de derrotas. O time delas era muito melhor do que o nosso, uma equipe fisicamente mais forte, mais alta, com muito mais estrutura. Quando você vai pra uma Olimpíada tem que estar inteiro em tudo. Não adianta só treinar, tudo conta – a experiência, a preparação psicológica. Você precisa estar ciente das suas limitações. Quando a gente abriu dois sets a zero sobre as americanas, na hora em que mudávamos de lado, olhei pra cara das minhas companheiras e vi que a gente estava muito alegre porque estávamos conseguindo algo que nós mesmas não achávamos que seria possível. Era algo na linha, “o que é que está acontecendo, a gente tá jogando pra caramba, as americanas não estão entendendo nada”. Nem a gente estava entendendo…

Saque Viagem – Ninguém entendia nada…
Isabel – A gente começou a vivenciar aquela onda de ganhar um jogo tão importante, algo completamente fora da nossa realidade, e ali a gente se perdeu. Nos embolamos nas nossas próprias pernas. Depois foi um sofrimento tão grande, uma dor. Eu dei uma entrevista dizendo que eu nunca havia perdido ninguém, mas ali parecia que alguém havia morrido. A pancada foi grande. No final das contas, a gente não se preparou de verdade pra ganhar. E foi uma partida com ginásio lotado, uma audiência incrível na TV, teve uma repercussão enorme.

 

Isabel no ataque, ao lado de Jacqueline, diante das americanas em Los Angeles-1984

 

Saque Viagem – No dia seguinte era o seu aniversário de 24 anos. Você se lembra da ressaca desse jogo?
Isabel – Lembro, eu não queria comemorar nada, só queria sumir. O time ficou arrasado.

Saque Viagem – Veio o ciclo olímpico seguinte com a troca de técnico e a chegada do Jorge Barros (Jorjão). A seleção mudou bastante a cada ano e logo na primeira temporada, em 1985, houve o corte da Jacqueline, que se recusou a fazer propaganda gratuita para o patrocinador, protestando ao colocar o uniforme de treino pelo avesso. Como você avalia aquele episódio?
Isabel – A Jackie, que se tornou uma grande campeã na praia, o primeiro ouro olímpico de uma mulher brasileira (ao lado de Sandra Pires, em Atlanta-1996), é extremamente importante. As causas que ela defendia eram muito justas, ela foi muito coerente, mas não teve a solidariedade do grupo. Da parte da comissão técnica, existia uma inabilidade para lidar com as diferenças, com qualquer coisa que não estivesse no padrão e várias jogadoras compactuavam com isso, fosse por medo ou por terem uma construção de vida diferente, de não acreditarem que o estava posto não era justo. Muitas vezes diziam algo nos bastidores, mas quando chegava na hora da decisão já não apresentavam o mesmo discurso. A Jackie pagou um preço caro, mas soube tirar partido da adversidade, soube se reinventar.

Saque Viagem – Em 1986 você foi um dos destaques do Campeonato Mundial, disputado na antiga Tchecoslováquia. O Brasil terminou em quinto lugar, a melhor colocação da seleção feminina até ali, vencendo pela primeira vez a União Soviética e o Japão em partidas oficiais. Porém, quando voltou, você deu uma entrevista em que afirmou, “estaria mentindo se dissesse que tenho prazer em estar na seleção”. Você acredita que isso foi a gota d’água e te custou um lugar no time pelo restante do ciclo?
Isabel – Muita gente gostava de mim, mas muitos me odiavam. Quem agrada a gregos e troianos desperta desconfiança, a não ser aqueles gênios que estão acima do bem e do mal, que são raros. Eu vinha de uma família onde as mulheres tinham voz. Meu pai tinha enorme respeito pela minha mãe, que era uma mulher inteligente. Lá em casa, nunca precisávamos falar alto para sermos ouvidas, a argumentação sempre foi o norte. Agora, imagina como era no esporte, ainda mais no esporte feminino. Havíamos acabado de sair de uma ditadura. Se vem uma menina com uma formação diferente, que questiona… Eu queria ter sido uma grande rebelde, mas não houve nada disso. É que pra época aquilo tinha um peso tremendo.

 

 

Saque Viagem – Ficar de fora da Olimpíada de Seul, em 1988, te aborreceu muito?
Isabel – Minha maneira de ser incomodava algumas pessoas, eram tempos mais sombrios… Se bem que o momento atual não poderia ser pior… Então, eu não combinava com aquilo. Se me incomodou não ir a Seul? Esse tipo de coisa sempre incomoda, ser rejeitada, ser deixada de lado. O esporte tem uma coisa muito concreta. Ora, se estou colocando a bola no chão e dão um jeito de me encostar… Mas tudo bem, passou.

Saque Viagem – Marco Aurélio Motta assume a seleção feminina em 1989, fica 70 dias e sai sem sequer dirigir a equipe num jogo. Entre outras coisas, ele disse à imprensa que havia pressão pra te convocar, que inclusive o porteiro do prédio dele estava cobrando isso. Você lembra desse episódio?
Isabel – Eu escrevi uma carta para um jornal respondendo ao Marco Aurélio. Lembro que no final eu escrevi “lembranças ao seu porteiro”. Ele afirmava: “Até o meu porteiro está me pressionando, dizendo ‘convoca ela. Você não vai convocar?’”. Ali, evidentemente, ele queria varrer uma geração e colocar uma nova. Eu ainda tinha 28 anos, nem era tão velha assim, estava em forma. Claro que o time é dele, a responsabilidade é dele. O cara vinha de uma trajetória de sucesso com a seleção juvenil, campeão mundial, estava respaldado naquilo. Tempos depois, o Marco Aurélio ligou e me chamou pra almoçar, disse que queria zerar aquela história. Eu achei bacana da parte dele, nós nos acertamos.

Saque Viagem – Veio em seguida o Inaldo Manta, que te levou para o Sul-Americano 1989, em Curitiba, e você acabou sendo um dos destaques, apesar de mais uma derrota brasileira para as peruanas. Foi sua última competição representando o Brasil. Você queria ter jogado mais pela seleção?
Isabel – Eu nunca fiz um jogo de despedida, nunca fiz nada disso. Um dia parei de jogar pela seleção e pronto. Não me chamaram mais, eu também encerrei meu ciclo. Ponto final, acabou.

Saque Viagem – E a relação com o Inaldo Manta?
Isabel – A minha relação com o Inaldo foi muito legal, aquele era um momento (1988/1989) em que eu jogava pela Sadia. Antes eu estava na Itália, mas queria voltar pro vôlei brasileiro, jogar num time forte, em alto nível e a Sadia, em São Paulo, era essa equipe. Os times do Rio, naquela época, não queriam me ver nem pintada. A Sadia era um grande time, com Ana Moser, Márcia Fu, Ida, Fernanda Venturini, eu. A gente ganhou naquele ano tudo o que disputou. Foi uma experiência super bacana morar em São Paulo, eu vivia perto da Avenida Paulista, numa casa de vila, com os meus filhos. Eu conseguia dirigir, ia pra todo lugar, a cidade foi uma grande descoberta. Além do esporte, eu gostava de ver outras coisas, isso me fazia feliz e, claro, eu jogava melhor assim.

 

Durante intervalo no treino da equipe da Sadia

 

Saque Viagem – Depois vieram suas temporadas no Japão. Como foi essa época?
Isabel – Fui jogar pela equipe da Toshiba, três temporadas. Era uma oferta de grana muito boa, que me deu estabilidade financeira.

Saque Viagem – Foi no Japão que você sofreu a única lesão realmente séria da sua carreira, tendo que passar por uma cirurgia?
Isabel – Rompi o ligamento cruzado anterior do joelho direito na segunda temporada no Japão. Eu forcei muito aquele joelho e antes disso não tinha tido nenhuma lesão séria, tive que operar. Mas ainda joguei muito tempo depois da lesão.

Saque Viagem – Como foi a sua migração para o vôlei de praia após as três temporadas no Japão?
Isabel – Eu não tinha nenhuma relação com o vôlei de praia, sabe. A praia, pra mim, era sinônimo de prazer, encontrar os amigos, mergulhar. Aquela era uma época, em 1992, em que a modalidade estava começando a se organizar no Brasil e no mundo, a caminho de se tornar esporte olímpico. Aí a Jackie me chamou pra jogar com ela, que já era uma grande atleta do vôlei de praia, estava na Califórnia (EUA). Eu pensei, “vou tentar aprender esse esporte”. Fui pra Califórnia pra pegar algumas manhas da modalidade com a Jackie. As pessoas acham que quadra e praia são parecidos, mas são dois esportes bem diferentes, apesar de ambos serem vôlei. A Jacqueline é minha amiga, mas joguei com ela por pouco tempo. Aquilo tudo era muito intenso pra mim. Depois tive outras parceiras. (Isabel jogou ainda com sua ex-colega de quadra Roseli Timm, quase se classificando para Atlanta-1996, e também teve parcerias com uma jovem Shelda Bedê, além de Gerusa da Costa e Tatiana Minello. Mais tarde, depois de ter se aposentado como atleta, voltaria à ativa para breves parcerias com as filhas Maria Clara e Carol.)

 

Em ação no vôlei de praia

 

Saque Viagem – E o retorno ao indoor?
Isabel – Eu ainda tinha uma relação forte com a quadra e pintou um convite para jogar na Itália. Cheguei pros meus filhos e perguntei o que eles achavam de ir para a Itália, se topavam. Lembro que estávamos à mesa, almoçando, e as crianças gritando “vamos”.

Saque Viagem – De lá novamente voltou a São Paulo, perto de encerrar a carreira de jogadora. Como foram aquelas últimas temporadas?
Isabel – Eu fui jogar no BCN, com o Ênio Figueiredo, e foi terrível. Eu era uma jogadora de praia e o Ênio precisou que eu fosse pra aquele time que ele estava montando. Eu disse a ele, “olha, eu topo, mas sem abrir mão do meu vôlei de praia”. Eu não queria parar de jogar na praia. Ele falou que tudo bem, mas na hora em que os torneios (de praia) começaram o Ênio botava um bico desse tamanho e não queria que eu fosse. Depois eu fui pro Dayvit, com o José Roberto Guimarães. Tenho muita admiração por ele, mas não foi uma experiência bacana.

Saque Viagem – Por quê, Isabel?
Isabel – Nada naquele time contribuiu para eu ter uma boa relação com o Zé Roberto. Eu acho que ele sabe disso. A gente nunca teve oportunidade de conversar sobre essa questão e eu também nunca quis. Uma amiga em comum me disse que ele pensava um pouco como eu. Na minha vida aconteceram duzentas mil coisas, na dele então nem se fala. Isso ficou pra trás. Mas não foi uma experiência boa. E não digo isso pelo Zé, mas pelo pacote daquela temporada. Se eu pudesse apagar algo da minha história, seria isso, pois não me deu nada de emocionante. Não estou falando de vitória ou derrota, falo do aspecto humano mesmo. Termina a temporada e você avalia… nada. Acabei sendo mandada embora de lá, foi tudo meio estranho. Dali eu fui pra Macaé. Montaram um time e eu fui, acabou sendo uma experiência engraçada, outra onda.

 

Como técnica do Vasco, ao lado de Márcia Fu, Fernanda Venturini e Ida

 

Saque Viagem – Você passou a ser técnica após sair do Macaé, foi trabalhar no Flamengo, depois no Vasco. Duas temporadas bem intensas, não?
Isabel – Eu montei o time do Flamengo, foi uma experiência muito legal, até pela minha relação com o clube, que é muito forte. Sou laureada pelo Flamengo, comecei ali. Trazer o vôlei de volta pro Flamengo foi muito emocionante. Fiz isso junto com a (produtora de cinema) Paula Barreto, mãe da Camilla Adão, ex-levantadora. O pai da Paula, o Barretão (produtor e diretor de cinema Luiz Carlos Barreto), também ajudou a gente a montar o time de vôlei do Flamengo de novo. Foi um barato. A Paula e eu trouxemos várias jogadoras que não eram conhecidas e que depois se tornaram grandes nomes. A Sassá, por exemplo. A Fabizinha, líbero, era uma menina, uma moleca. Tinha a Fluvia, que depois foi para o Rexona.

Saque Viagem – Nessa temporada o Flamengo ainda tinha um time modesto. Na seguinte, em 2000/2001, vieram as equipes milionárias tanto do próprio Flamengo quanto do Vasco da Gama. Você foi ser técnica do Vasco, que acabou sendo vice-campeão da Superliga, teve problemas para pagar atletas e comissão técnica. O que houve naquele período?
Isabel – O Vasco era uma grande equipe, foi muito legal, mas a gente teve vários problemas. A minha experiência como técnica na temporada anterior no Flamengo havia sido enriquecedora. As duas torcidas eram extraordinárias. Tivemos tudo de bom que a atmosfera do futebol proporciona e também as dificuldades de trabalhar com essa energia. O Vasco parou de pagar, ficou conturbado, havia uma situação nos bastidores que era difícil de lidar. Ganhamos do Rexona na semifinal e perdemos a final para o Flamengo, numa melhor de cinco jogos. Aquela série final da Superliga 2000/2001 entre Flamengo e Vasco foi uma loucura, as duas torcidas lotando o Maracanãzinho.

Saque Viagem – Você recebeu tudo o que o Vasco te devia?
Isabel – Mesmo não pagando tudo o que estava no contrato, ainda recebemos mais do que ganharíamos em outra equipe. Claro que isso não justifica, não atenua, afinal se você acertou um valor tem que receber o que foi acordado, está no contrato. Algumas jogadoras entraram na Justiça para receber o que tinham direito. Eu não recebi tudo, mas também foi a única vez que isso aconteceu comigo. Eu brigava muito pelas atletas que eu sabia que estavam precisando desesperadamente daquele dinheiro.

 

Com as filhas Maria Clara e Carol grávidas

 

Saque Viagem – Por que você não deu continuidade a sua carreira como técnica no indoor? Faltou proposta ou foi a opção de ir treinar as filhas na praia?
Isabel – Foi uma experiência muito legal, mas não era a minha… Ser técnica na quadra exige uma dedicação que não cabia mais na minha vida àquela altura. Além disso, eu tinha o desejo de trabalhar com as minhas filhas na praia. Foi tudo certo no meu período como técnica na quadra, foi de bom tamanho. Eu também não tive nenhuma grande proposta para seguir em frente, mas largaria de qualquer modo. Na quadra, eu só pensava naquilo o dia inteiro. Na praia não, estava num ambiente que eu curtia, via o mar. Moro no Rio de Janeiro, dava treino na areia. Estava com as minhas filhas, viajava com elas. A gente sofria junto, ria junto. Não era por dinheiro que estava com as meninas, pois eles estavam começando na carreira, mas eu estava aonde queria estar, estava feliz ali.

Saque Viagem – Ainda são raras as técnicas no vôlei indoor, tanto aqui quanto no resto do mundo. Temos o exemplo da Lang Ping, campeã olímpica e bicampeã da Copa do Mundo com a China. No Brasil, além de você, tivemos a Sandra Mara Leão, que dirigiu o time da Uniara na Superliga. A que você atribui essa baixa presença feminina no comando das equipes?
Isabel – Um ponto importante é o fato de ser um clube do bolinha. Quando eu comecei como técnica, lembro que era muito forte o fato de eu ser uma mulher, era muito questionada. Como se o simples fato de eu ser uma mulher fosse o mais importante, fosse determinante. Não é. Falem da minha competência como técnica, falem do meu trabalho, se sou boa ou não. Depois treinei homens, no vôlei de praia. Fui trabalhar no Japão com uma dupla masculina e tinha que firmar posição o tempo todo. É chato, é ultrapassado, isso não cabe mais no mundo moderno. Tem o lado machista, claro.

Saque Viagem – O que você tem feito nos últimos anos? Ainda supervisiona a carreira dos seus filhos?
Isabel – Não mais. Eu fiz alguns trabalhos com televisão (produziu e apresentou duas temporadas do programa “Em Família com Isabel”, no canal Mais, da Globosat), mostrando a participação das famílias na carreira dos atletas. Eu estava com um projeto na televisão que foi adiado por causa da pandemia de coronavírus, mas não quero falar disso agora, espero que role depois. Nos últimos meses, em razão da pandemia, estou em isolamento, cuidando de mim e dos outros, respeitando o que a ciência diz.

 

Na torcida pelo filho Pedro Solberg, durante etapa do circuito mundial de vôlei de praia, em 2008

 

Saque Viagem – Você mantém alguma ligação com o vôlei como atividade profissional?
Isabel – Não e também não sinto nenhuma falta, apesar de adorar a emoção do esporte, ver meus filhos jogando, viajar para ver um torneio. Já joguei muito tempo, vivi muitos anos dentro da quadra, tenho curiosidade por tantas coisas na vida, quero ver outras coisas, investir nisso.

Saque Viagem – Que avaliação faz da sua trajetória no esporte?
Isabel – Eu nunca tive o prazer de conquistar grandes títulos pela seleção, mas minha geração e eu contribuímos para fazer com que o vôlei fosse mais visto, ajudamos a abrir as portas para a nossa modalidade. Isso me deixa imensamente feliz. Mesmo nas derrotas, mesmo não tendo tido vitórias emblemáticas que representam tanto no esporte, me sinto vitoriosa porque joguei com muito prazer, alegria. Eu vivi aquilo intensamente, com muito amor. Eu devo demais ao vôlei, que me alimentou bastante emocionalmente.

Saque Viagem – Você ainda vai ao ginásio ver voleibol, acompanha pela TV?
Isabel – Olha, eu não sei mais nada do vôlei de quadra. Às vezes eu fico meio constrangida porque encontro alguém que faz um comentário e finjo que sei. Mas, de repente, se estou em casa e está passando um jogo na TV, aí eu olho. Acho vôlei lindo. Quando é um grande jogo, eu vejo. Também não tenho tempo, com cinco filhos e cinco netos. Há os filmes que quero ver, os livros que quero ler, acaba não sobrando tempo.

Saque Viagem – Como o Alison**, seu quinto filho, entrou na sua vida?
Isabel – Eu sempre tive o desejo de adotar, tinha espaço dentro de mim para mais um filho, mas não para um bebê por vários motivos, como a minha idade. Outro aspecto é que as crianças mais velhas enfrentam muito mais dificuldade para serem adotadas. Mesmo assim, não foi uma coisa trabalhada, foi um encontro. Eu dei a sorte de encontrar o Alison, de saber a história dele e o adotei sem nenhuma adaptação, seja por parte dele ou da minha. Ele foi um grande aprendizado para mim em várias questões, como no caso do racismo, por exemplo, me fez vivenciar isso numa outra ótica, como mãe, morando num país tão racista quanto o nosso. Ele é muito alegre, brincalhão e tem essa mãe aqui. O Alison é um grande presente que a vida me deu.

 

Com a tocha olímpica, antes da Rio-2016, no Cristo Redentor

 

Saque Viagem – Em geral os atletas não se posicionam de forma contundente sobre questões como desigualdade, racismo e homofobia. Isso te incomoda?
Isabel – A gente está num momento tão sombrio no país, tão duro, tão difícil, com mais de 90 mil mortos pelo coronavírus e ainda tem que lidar com o negacionismo. Toda semana um menino negro é massacrado, crianças são assassinadas. Imagina uma criança morrer dentro de casa, enquanto brinca, como a gente vê aqui no Rio de Janeiro e também Brasil afora. Uma mulher ter seu pescoço pisoteado por um policial – aquela cena é de uma brutalidade. Quando você vê o que está sendo feito com a educação no país, com a saúde. Quando você vê o conteúdo daquela reunião ministerial de 22 de abril. Não tá legal, não é justo. Não consigo imaginar a minha vida sem me posicionar. Eu estou no mundo e não consigo ficar quieta vendo quem está do meu lado sofrer uma covardia enquanto eu fecho minha janela, minha porta. O segmento esportivo tem uma força muito grande, então eu simplesmente lamento que a gente perca a força dessas vozes que são tão importantes, que não sirvam ao fim de ter um país mais justo, com mais respeito. Tem muita gente pedindo socorro, a desigualdade só se aprofunda, isso é muito triste.

Saque Viagem – Essa indignação foi o que te levou, ao lado de alguns atletas, a lançar em junho o movimento “Esporte pela Democracia”?
Isabel – Quando o Casagrande me telefonou, falou sobre questões que o incomodavam muito. Incomodavam a mim também, assim como a Ana Moser, a Joanna Maranhão, a Fabizinha. Aí vários atletas foram procurados, como o Serginho, o Gustavo Kuerten, outros também, assim como representantes de várias áreas da sociedade. Precisamos estar juntos e mostrar o nosso pensamento. Veja o que está acontecendo com o meio ambiente, isso é assustador. Decidimos nos juntar e falar. Sabe, o desrespeito à Constituição. O grupo reúne desde gente mais à esquerda como da direita também, o nosso foco é a cidadania. É preciso respeitar a ciência, a vida, ter ética. Eu não posso aceitar que façam apologia à tortura, isso é inegociável.

 

 

Saque Viagem – Em janeiro deste ano você divulgou uma carta aberta em que criticava o tratamento dispensado pelo governo Jair Bolsonaro à área cultural. O que te levou a se manifestar?
Isabel – Desde a posse desse governo ocorreram algumas coisas que são tão emblemáticas, a forma como a cultura vem sendo tratada. Chico Buarque ganha o Prêmio Camões e o governo não fala nada. Morre João Gilberto, o mundo inteiro o reverencia, mas aqui não foi dita uma palavra pelo secretário de Cultura ou pelo presidente, ninguém do governo federal. O ataque contra a Fernanda Montenegro. O tratamento dado à cultura é constrangedor. Quando eu decidi escrever a carta, eu estava escutando uma música do Gilberto Gil e lembrei que ele também é atacado por esse governo. Quanta coisa o Gilberto Gil nos deu. O quanto a minha vida foi pontuada pelo João Gilberto, pelo Chico, pelo Caetano, pelo cinema, pelo teatro. É preciso governar para todo mundo, não apenas para o seu grupo.

Saque Viagem – Em maio foi a vez de você escrever outra carta, em que dizia que a ex-jogadora de vôlei Ana Paula Henkel “presta um desserviço” no combate ao racismo.
Isabel – Me pareceu sem sentido uma pessoa falar de um assunto tão importante quanto o racismo de uma forma muito rasa, sem conhecimento. E aquilo partindo de uma pessoa que é tão popular nas redes sociais… Eu só queria dizer que aquele é um assunto que a sociedade brasileira precisa debater de outra maneira.

Saque Viagem – Ela chegou a te procurar após a publicação do seu texto?
Isabel – Não, eu não a conheço. Sei quem é a Ana Paula, foi uma grande jogadora, mas nunca tive contato com ela.

 

Isabel durante etapa do circuito mundial de vôlei de praia, em 2015

 

Saque Viagem – Em junho, a oposta Tandara, da seleção brasileira, conseguiu uma vitória importante na luta pelos direitos das mulheres no esporte. Como você viu essa decisão?
Isabel – Achei muito bom, ali foi aberto um precedente muito legal para as mulheres. Não entendo como um clube paga um mico daqueles. Isso era muito comum na minha geração. Engravidou, esconde logo (a atleta), joga fora.

Saque Viagem – A passagem do tempo te preocupa, o envelhecimento?
Isabel – Envelhecer é a outra opção, como diz a Fernanda Montenegro, ainda que não seja lá das melhores coisas. A outra seria morrer. Ou você envelhece ou morre. Dessas duas, vamos envelhecer então, é a melhor das opções. Eu ainda acho graça na vida.

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*O Mundialito foi um torneio amistoso entre seleções, promovido pela Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). Teve duas edições no masculino, em 1982 e 1984, ambas vencidas pelo Brasil. No feminino, teve apenas uma edição, em 1982, vencida pelo Japão, com a seleção brasileira sagrando-se vice-campeã, tendo derrotado a União Soviética e a Coreia do Sul. Os dois Mundialitos realizados em 1982 – o feminino no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, e o masculino no Maracanãzinho, no Rio – foram os grandes impulsionadores do voleibol no país, com transmissão da TV Record. A popularidade se consolidaria com a medalha de prata dos homens no Campeonato Mundial, semanas mais tarde.

 **Alison, de Ribeirão Preto, foi adotado por Isabel quando ele tinha 13 anos, em 2015.

 

 

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